Viver a Vida (Vivre sa Vie) - 1962. Escrito e Dirigido por Jean-Luc Godard, inspirado pelo livro Où en est la prostitution de Marcel Sacotte. Música Original de Michel Legrand. Direção de Fotografia de Raoul Coutard. Produzido por Pierre Braunberger. Les Films de la Pléiade e Pathé Consortium Cinéma / França.
Assistir a um filme de Godard é uma experiência única ao meu ver, é vivenciar, não tão somente o drama ou a ventura de seus personagens, mas a arte cinematográfica como um todo, que pode ser sentida como uma máquina pulsante, que trabalha à todo vapor, sendo desmontada e em seguida reconstruída, ciclicamente, sem que para isso seja necessário interromper seu pleno funcionamento. Por isso em seus filmes qualquer olhar reducionista e limitado pode prejudicar toda apreciação e todo o entendimento. Suas obras geralmente trazem consigo uma gama de significados e conceitos, alguns aparentes e outros nem tanto, mas todos de extrema importância para uma plena compreensão de sua genialidade. Em seus filmes, entrelaçadas à trama e tão importantes quanto ela, estão a experimentação e a reinvenção constante do cinema como expressão artística e da forma com que se dá o "diálogo" com nós espectadores.
Tal como no modelo do Teatro Épico, proposto por Bertolt Brecht, nas obras de Godard o ser humano é apresentado como obejeto de investigação, passível de constantes transformações, e não como algo previamente conhecido e imutável, é justamente nesta característica que se encontra um dos principais vieses da reconhecida politização do cineasta. De acordo com tal visão, se o homem é um ser “inacabado”, ele pode ser instigado à permanente transformação, sendo que esta viria através da reflexão consciente, que é geralmente proposta pelo diretor/autor em seus roteiros. Este aspecto pode ser facilmente percebido na história e na montagem do excelente Viver a Vida (1962), uma de suas obras mais cultuadas.
“Vivre sa Vie” (Viver a Vida) é uma uma gíria francesa usada como referência à prostituição, mas no filme, que narra as peripécias de Nana Kleinfrankenheim (Anna Karina), uma garota de programa, tal expressão ganha ainda uma outra conotação, falarei dela mais adiante, vamos primeiro à trama: Nana é uma linda jovem de 22 anos que deixou o marido e o filho, ainda bebê, para perseguir o sonho de ser atriz de cinema, o que ela não esperava é que a nova vida não seria nada fácil. Sem conseguir realizar suas pretensões, ela se vê compelida a se prostituir para se sustentar. O mote já trás explicita a conotação original da gíria, porém há a outra, que não está assim tão aparente, “Vivre sa Vie” é também na trama uma referência à nossa existência, á condição que experimentamos quando tomamos ciência de quem realmente somos... No filme Godard brinca com a noção da realidade, criando assim uma alegoria do próprio cinema; em tons de metalinguagem ele propõe uma reflexão existencialista acerca de nossa percepção de nós mesmos, enquanto indivíduos, e da realidade à nossa volta.
“Eu acho que sempre somos responsáveis pelo que fazemos, somos livres! Se eu levanto minha mão, sou responsável; se viro a cabeça para direita, sou responsável; se estou infeliz, sou responsável; se fumo um cigarro, sou responsável; se fecho os meus olhos, sou responsável... Eu esqueço que sou responsável, mas eu o sou...”
Nana em um determinado momento do filme expõe seu desapontamento em perceber que por vezes suas palavras são vazias e mentirosas, mas a verdade é que elas não são assim por sua culpa, mas pelo simples fato de não pertencerem à ela, afinal ela é tão somente uma personagem (fato que o roteiro não faz questão de dissimular) e por mais que ela se afirme como responsável pelos seus atos, ela não o é... Ao se encontrar imersa em uma reflexão que lhe gera dúvidas profundas, Nana direciona seu olhar para a câmera, como se descobrisse pela primeira vez sua real condição, contudo, ela logo desvia o olhar e dá sequência ao diálogo, como se negasse aquilo que realmente é, penso que isto pode ser também compreendido como uma espécie de releitura da alegoria da caverna de Platão.
Godard recorre ao modele de Brecht ao desconstruir a narrativa fílmica clássica, visando provocar com isso um desconforto em nós expectadores, que somos tirados da condição de público passivo e induzidos à reflexão e à tomada de decisões; isto pode ser observado em uma outra passagem, na qual um personagem recita um trecho de um livro de Edgar Allan Poe, que narra a história de um pintor que produzia um retrato de sua esposa, ele mergulha em sua arte de tal forma que a tela passa a ser sua realidade, só após termina-la e desprender-se dela, ele descobre que a sua esposa jazia morta atrás dele... Com esta história, por exemplo, somos instigados a questionar a nossa própria realidade; será que ela é de fato verdadeira, ou será que não passa de uma ilusão, assim como o quadro do conto, ou as sombras na caverna de Platão? A personagem central do filme se vê diante da mesma reflexão, ela no entanto é incapaz de responder por si, dada sua condição, mas nós não o somos, ao percebermos isso, abre-se uma porta para mudanças e transformações em nossa maneira de interpretar e de interagir com o mundo à nossa volta.
A inegável influência de Bertolt Brecht está também na montagem do filme, que faz com que cada sequência exista por si mesma, independente das demais. A trama é dividida em 12 partes e cada uma destas em "subtítulos" que anunciam de forma literal alguns dos acontecimentos daquela secção... A tensão é desenvolvida pelo andamento da trama e não pela prenunciação da solução dos conflitos dramáticos, aspecto também característico do Teatro Épico; esta constatação explica a forma seca com que Godard conclui o longa, sem catarse nem qualquer tipo de redenção, nem para a personagem, nem para nós nós expectadores... É interessante também a forma com a câmera relata a ação, capturando as imagens ora por ângulos improváveis, como na primeira sequência em que os personagens são focados pelas costas, ora de forma ensandecida, como na cena memorável em que Nana dança em um bar, se insinuando de forma sensual para os presentes.
Anna Karina é como sempre um destaque à parte no filme, sou meio suspeito para falar, pois para mim ela é uma das mais belas atrizes de todos os tempos, não tem como não se apaixonar por aquele olhar cheio de expressão e embebecido de sentimentos diversos... Acreditem ou não, ela chegou a acusar Godard, seu marido na época, de tê-la enfeiado no filme, acusação que, convenhamos, é simplesmente absurda! Ela, que atua durante quase todo o tempo com um cigarro entre os dedos e mantém uma postura constantemente sedutora, nos faz lembrar o estereótipo das femme fatales dos films noir da década de 40, porém a melancolia de seu olhar surge como um contraponto à tal imagem, tornando-a visivelmente sensível e angustiada.
Mas, não só de sua trama filosófica e de Anna Karina, vive o filme, dentre seus méritos estão também a bela fotografia em preto e branco dirigida por Raoul Coutard, contumaz parceiro de Godard e a áurea mágica dos anos 60, que ele exala junto o ranço característico das produções da Nouvelle Vague francesa, o que, resumindo, o torna praticamente perfeito em sua proposta. Este é um clássico obrigatório para todos os amantes da sétima arte! Dica: Ao assisti-lo preste atenção na passagem em que Nana assiste A Paixão de Joana D’Arc (1928) de Carl Dreyer e na memorável sequência em que ela contracena com o filósofo e ensaísta francês Brice Parain, que interpreta a si mesmo... Sim, é uma obra prima!
Confiram também aqui no Sublime Irrealidade as resenhas de outros filmes de Jean-Luc Godard: Tempo de Guerra (1963), Bande à Part (1964) e Alphaville (1965)!
A revelação das passagens aqui comentadas não compromete a apreciação da obra,
portanto não devem ser consideradas spoilers!







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